AS COISAS NÃO SÃO FEITAS POR ACASO

O CINEMA SÃO JORGE RECEBEU ONTEM A ANTESTREIA DO DOCUMENTÁRIO SOBRE O FOTOJORNALISTA EDUARDO GAGEIRO, PRODUZIDO E REALIZADO POR TIAGO CRAVIDÃO.

Durante hora e meia as imagens descrevem as mais variadas passagens do dia-a-dia de um dos maiores fotógrafos portugueses, prestígio granjeado ao longo de (longos) 65 anos de carreira, já que aos 12 teve uma fotografia sua publicada na primeira página do Diário de Notícias.

 

Eduardo também é um excelente conversador

 

É verdade que quem contacta com o mestre precisa de pensar duas vezes nos seus 78 anos de idade, já que não transparecem minimamente na sua postura, equilibrando sempre a máquina fotográfica ao ombro (nunca o vi sem ela), na sua jovialidade, com aquele tique que lhe é tão característico de quem está sempre ansioso e com pressa de partir para o sítio seguinte, como que adivinhando que vai surgir na sua frente outra rapariga de olhar triste e que, nesse momento, não poderá falhar o retrato que mudará a vida dela para sempre.

O guião do documentário é excepcional. Afasta-se do formato Grande Reportagem televisiva e permanece num registo tipo longa metragem, editado sobre imagens registadas ao longo de quatro anos. O filme prende-nos com a variedade de situações em que temos o privilégio de conviver com o Eduardo Gageiro numa intimidade que, embora contida e respeitadora, não deixa de ser imensamente deliciosa - enquanto o observamos a fotografar em variadas situações, desde um agitado baile até às orações de freiras num convento, ou assistimos a diálogos com contemporâneos sacavenenses recordando passagens da adolescência, ou acompanhamos a eternamente apaixonante e, para muitos dos mais novos curiosa, aparição das imagens no papel durante a revelação química em laboratório.

Não tem narrador em voz off. A história da carreira profissional como fotógrafo é contada na primeira pessoa sem nunca ser fastidiosa: primeiro, não é cronológica, mas também não é confusa; segundo, não utiliza os recursos que vulgarmente se centram na exibição das imagens em autênticos slideshow, com o zoom in and out do costume; terceiro, não recorre a uma longa lista de entrevistados cujas intervenções visam simplesmente abonar a pessoa como de uma mera homenagem se tratasse.

 

Eduardo Gageiro e Tiago Cravidão

 

E aqui devo referir a maior qualidade da realização do Tiago Cravidão. Até ontem não tinha o prazer de o conhecer, nem nunca li nada onde ele avaliasse a obra de Eduardo Gageiro, mas ninguém se propõe a concretizar um projecto que consome cinco anos de trabalho para filmar alguém sem fazer parte da sua legião de admiradores. No entanto, isso não transparece de forma vulgar no documentário, que nunca é lamecha nem delicodoce. O título, "As coisas não são feitas por acaso", que interpreto como sendo o talento e a perseverança que presidem aos resultados, reflecte, sem dúvida, o apreço do realizador pelo fotojornalista. Tiago Cravidão faz uma abordagem fina, no sentido de ter classe, mas sem nunca ser cinzenta ou falha de graça. Chega a ser até hilariante em certas situações como aquela da mesquita durante uma oração: Gageiro, sempre de máquina em punho, vai a passar entre várias filas de fiéis que, de joelhos no chão, se inclinam constantemente, ao ritmo das rezas, obrigando-o a parar várias vezes até conseguir atravessar a sala completamente.

A plateia rebentou numa gargalhada.

Resumindo, é uma homenagem que não enferma do formato de... homenagem. É o que Eduardo Gageiro merecia. Eu sei que ele não gosta de ser tratado como vedeta.

Luiz Carvalho, também ele um reputado fotojornalista, admirador confesso de Eduardo Gageiro, afirmava na entrevista que lhe fez Ana Aranha para o programa "Vidas Que Contam" da Antena 1 (aqui), que o considera a nossa Amália da fotografia. Diz ele que encontra paralelo na voz rara da fadista com aquele instante raro e enquadramento das fotografias do Gageiro. Que ambos representam a alma portuguesa.

Acho que é uma definição muito feliz.

 

O fotojornalista Luiz Carvalho registando o momento

 

Entre as muitas coisas que se afirmam sobre ele há uma que se destaca. Diz-se que anda constantemente ao contrário dos outros fotógrafos, daí ser autor de imagens únicas. Pessoalmente, posso comprová-lo com uma cena vivida ontem: no final do documentário, enquanto passavam os créditos e o público aplaudia sem parar, acenderam-se as luzes e toda a plateia olhou para a fila onde estava sentado Eduardo Gageiro, tendo as palmas subido mais de tom. O mestre levantou-se, virou-se para trás e, surpreendentemente, quando todos esperavam um agradecimento, empunhou a sua Canon e fotografou os presentes. Somente agradeceu os aplausos a seguir.

 

 

Cito Gageiro:

"Eu fiz pela minha terra o que devia, não fiz nada de especial, mas acho que fiz alguma coisa. Eu sou conhecido, passe a imodéstia. Esse reconhecimento é que me comove."

Caro Eduardo, a mim, o que me comove, é a sua obra.